Daily Line: Esta não é para os fracos
POSSUI SPOILER DO LIVRO 9 | Leia outros em Trechos da Diana
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Não foi Deus que o encontrou, mas a melhor coisa depois dele. A memória do Major Gareth Everett, um dos amigos do seu pai, um ex-capelão militar. Everett era um homem alto e de rosto comprido que usava o cabelo grisalho repartido ao meio de uma maneira que o fazia parecer um velho cão de caça, mas ele tinha um senso de humor negro e tratava Roger, treze anos mais velho, como um homem.
– Você já matou alguém? – ele perguntou ao major em uma noite quando estavam sentados à mesa depois do jantar, enquanto os mais velhos contavam histórias sobre a guerra.
– Sim – respondeu o major, sem hesitação. – Eu não seria útil para os meus homens, morto.
– O que você fez por eles? – perguntou Roger, curioso. – Quero dizer, o que faz um capelão em uma batalha?
O major Everett e o reverendo trocaram um breve olhar, mas o reverendo assentiu e Everett inclinou-se para a frente, os braços cruzados sobre a mesa à sua frente. Roger viu a tatuagem em seu pulso, uma espécie de pássaro, as asas abertas sobre um pergaminho com algo escrito em latim.
– Você pode ficar com eles – disse o major calmamente, mas seus olhos estavam fixos nos olhos de Roger, profundamente sérios. – Pode tranquilizá-los. Dizer a eles que Deus está com eles. Que você está com eles. Que eles não estão sozinhos.
– Ajudá-los quando puder – disse o seu pai, baixinho, os olhos fixos no oleado cinza gasto que cobria a mesa. – Segurar suas mãos e orar, quando não puder ajudar.
Ele viu, realmente viu, a explosão de um canhão. Uma faísca de floração avermelhada brilhante do tamanho da sua cabeça que piscou na névoa com explosão de fogos de artifício, e então, desapareceu. A névoa foi soprada para trás com a explosão e ele conseguiu ver tudo com clareza por um segundo, não mais do que isso: o casco negro da arma, a boca redonda escancarada, a fumaça mais densa do que a névoa rolando sobre ela, caindo no chão como água, o vapor subindo do metal quente para juntar-se à névoa turbulenta, os artilheiros aglomerando-se sobre a arma como formigas azuis frenéticas, engolidas no instante seguinte em um turbilhão branco.
E, então, o mundo ao seu redor enlouqueceu. Os gritos dos oficiais vieram com a explosão do canhão; ele só sabia disso porque estava perto o suficiente do general para ver a sua boca aberta. Mas agora ouvia-se um bramido geral se elevando entre os homens que carregavam o canhão, e que corriam com determinação para a forma escura do reduto que estava diante dele.
A espada estava em sua mão e ele corria e gritava coisas sem significado.
Tochas brilhavam fracamente na névoa, soldados tentavam disparar novamente contra os abatis, ele pensou vagamente. Houve um canto agudo de algum tipo que poderia ser do general, ou não.
O canhão: quantos? Ele não sabia dizer, mas eram mais do que dois; os disparos continuavam em um ritmo assombroso, o estrondo sacudindo seus ossos a cada meio minuto ou mais.
Ele obrigou-se a parar, curvado, as mãos nos joelhos, ofegando. Ele pensou ter ouvido tiros de mosquete, abafados, estrondos ritmados entre os disparos do canhão. Saraivadas de balas disciplinadas do exército britânico.
– Carregar!
– Atirar!
– Para trás! – os gritos de um oficial soaram repentinamente em meio ao silêncio entre um estrondo e outro.
– Você não é um soldado. Se for morto… ninguém poderá ajudá-lo. Vá para trás, idiota.
Ele tinha estado na retaguarda, mas agora estava cercado por homens que surgiam todos juntos, empurrando, correndo em todas as direções. Ordens eram bradadas e ele achou que alguns dos homens lutavam para obedecer; ele ouviu gritos aleatórios, viu um menino negro que não poderia ter mais de 12 anos lutando com todas as forças para carregar um mosquete mais alto do que ele. Usava um uniforme azul escuro e um lenço amarelo brilhante apareceu quando a névoa se dissipou por um instante.
Ele tropeçou em alguém deitado no chão e caiu de joelhos, a água salobra escorrendo por suas calças. Ele pousou as mãos no homem caído e o calor repentino nos seus dedos frios foi um choque que o trouxe de volta ao seu estado de alerta.
O homem gemeu e Roger retirou as mãos, depois conseguiu recuperar-se e buscou a mão do homem. Ela não estava lá, e sua própria mão ficou encharcada com o jorro de sangue quente que cheirava a um matadouro.
– Jesus – disse ele, enxugando a mão nas calças e agarrando a bolsa com a outra, ele tinha alguns panos… ele puxou algo branco e tentou amarrá-lo ao redor… ele buscou desesperadamente por um pulso, mas este também havia sumido. Ele pegou um pedaço da manga e foi tateando o caminho para cima o mais rápido que pôde. Porém, só alcançou ao braço ainda sólido um momento depois que o homem morreu, ele pôde sentir a franqueza repentina do corpo sob sua mão.
Ele ainda estava ajoelhado ali com o pano não utilizado na mão quando alguém tropeçou nele e caiu de cabeça com um tremendo splash. Roger levantou-se e caminhou agachado até o homem caído.
– Você está bem? – ele gritou, curvando-se para frente. Algo assobiou acima da sua cabeça e ele jogou-se em cima do homem.
– Jesus Cristo! – o homem exclamou, socando Roger com força. – Tire o diabo de mim, seu imbecil!
Eles lutaram na lama e na água por um tempo, cada um tentando usar o outro como alavanca para subir, e o canhão continuava atirando. Roger empurrou o homem para longe e conseguiu rolar de joelhos na lama. Gritos pedindo ajuda vinham de trás dele, e ele virou-se naquela direção.
A névoa já tinha quase desaparecido, conduzida pelas explosões, mas a fumaça do canhão flutuava branca e baixa no terreno irregular, exibindo flashes de cor e movimento enquanto se partia.
– Socorro, me ajudem!
Então, ele viu o homem, de joelhos, arrastando uma perna, e avançou pelas poças para alcançá-lo. Não havia muito sangue, mas a perna estava claramente machucada; ele colocou o próprio ombro embaixo do braço do homem e o colocou de pé, empurrando-o o mais rápido possível para longe do baluarte, fora do alcance…
O ar foi estilhaçado novamente e a terra pareceu se inclinar sob ele. Ele estava deitado no chão com o homem que estava tentando ajudar em cima dele, a mandíbula do homem caída, sangue quente e pedaços de dentes encharcando seu peito. Em pânico, lutou para livrar-se do corpo que se contorcia. – Oh, Deus, oh, Deus, ele ainda estava vivo – e, então, ajoelhou-se ao lado do homem, escorregando na lama, segurando-se com uma mão no peito onde podia sentir o coração batendo no mesmo ritmo do sangue que jorrava. – Oh, Deus, me ajude!
Ele procurava as palavras, frenético. Não havia nada. Todas as palavras reconfortantes que tinha conseguido reunir, tudo o que tinha aprendido no seu ofício…
– Você não está sozinho – ele ofegou, pressionando com força o peito arfante, como se pudesse ancorar o homem na terra na qual estava se desfazendo. – Eu estou aqui. Eu não vou te abandonar. Vai ficar tudo bem. Você vai ficar bem.
Fonte: Diana Gabaldon
Data de publicação: 24/05/2020
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